Que a água é um recurso natural indispensável para o desenvolvimento de atividades humanas - sejam elas produtivas ou de subsistência - é de conhecimento comum. Contudo, as questões logísticas relacionadas ao seu manejo e consumo constituem um problema central no país. Estima-se que, em 2021, 40,3% da água captada na natureza foi perdida no sistema de distribuição brasileiro, seja por conta de vazamentos na rede, fraude no consumo, erros de leitura ou outros problemas. Esse percentual corresponde a 7,3 bilhões de metros cúbicos de água que foram tratados, mas não foram faturados pelas empresas do setor. Desse total, 3,8 bilhões de metros cúbicos foram perdidos por conta de vazamentos dos mais diversos tipos, correspondendo a aproximadamente 50% das perdas verificadas. Com toda essa água perdida pelas mais diversas causas, seria possível fornecer atendimento para aproximadamente 30% da população brasileira, ou seja, aproximadamente 67 milhões de pessoas de acordo com os dados de 2021.
Sabendo do tamanho da problemática, diversas soluções para a mensuração, identificação e controle de vazamento são ofertadas no mercado. Sistemas de sensores posicionados in-situ juntamente com técnicas robustas de processamento de sinais são utilizados para monitorar o sistema de distribuição, garantindo assim uma resposta rápida e localizada em casos de vazamento. Esses sensores funcionam de diversas formas, como por exemplo através da comparação de sinais gerados pela vibração dos dutos que conduzem a água devido a presença de vazamentos. Embora tais soluções apresentem as suas vantagens, ainda tratam-se de alternativas caras e pouco adequadas ao cenário nacional. Isso ocorre devido ao fato de que, para checar os sensores, treinar pessoal e desenvolver novas tecnologias, atualmente é necessário dispor de um campo de prova para simular os vazamentos. A grande questão é que um campo de prova apresenta uma estrutura bastante rígida, não sendo possível alterar o tipo de solo ou de tubulação utilizada, variáveis indispensáveis para o desenvolvimento de um sistema acurado. Além disso, os dispositivos que localizam vazamentos chamados de correlacionadores de ruído são todos importados, sendo validados e adequados às condições em seus países de origem, mas não no Brasil. Dessa forma, quando utilizados no contexto nacional, os equipamentos carecem de ajustes que os façam adequados às especificidades do país.
Motivados pela necessidade de novas soluções e pelo potencial impacto de uma inovação, pesquisadores da UNESP liderados pelo Prof. Michael J. Brennan e Prof. Fabrício Almeida, com financiamento FAPESP via chamada PITE-SABESP nuclearam um grupo de pesquisa em gestão de perdas, onde modelos e novas técnicas foram e estão em desenvolvimento. Com a aposentadoria do Prof. Brennan, o grupo hoje é liderado pelo Prof. Almeida no Laboratório de Águas Digitais (LAD) do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Unesp Câmpus de Bauru. Esse grupo de pesquisa busca novas e melhoradas alternativas para a forma como os sistemas de monitoramento de vazamento são calibrados e preparados, bem como, na qualidade do treinamento da mão-de-obra que os utilizarão. Dessa maneira, surgiu então o projeto de desenvolvimento de um método de simulação de vazamentos portátil, ou seja, uma bancada de fácil manuseio que pode reproduzir sinais de vazamento similares aqueles encontrados em campo, entretanto, com a vantagem de repetibilidade.
Os trabalhos do grupo de pesquisa nesta invenção tiveram início em 2013. Financiado pela SABESP, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, via uma chamada FAPESP PITE. O objetivo dos pesquisadores era desenvolver soluções que permitissem otimizar os produtos disponíveis no mercado para o contexto nacional. Daí surgiu a ideia de desenvolver um sistema de bancada que simula ruído de vazamentos. "A proposta é, ao invés de usar o campo, utilizar um sistema portátil e versátil, em que é possível mudar o tipo de tubulação, o solo analisado e assim por diante. Este tipo de sistema permite muito mais variedade no que se refere aos testes e à calibração, já que as diferentes variáveis afetam o sinal de vazamento resultante," conta o Prof. Dr. Fabricio Almeida. "Com o equipamento, que sobretudo ainda é portátil, é possível não só calibrar os sensores, mas também gravar os diversos tipos de sinais de vazamento obtidos em cada teste e compartilhar facilmente com pessoas em qualquer parte do mundo, até mesmo sinais de vazamentos coletados em situações reais. Dessa maneira, é possível reproduzir fidedignamente um sinal gravado em qualquer lugar no mundo e usá-los em testes/treinamentos por empresas do setor. Por exemplo um sinal gravado no Japão pode ser reproduzido no Brasil via uma dessas bancadas", continua.
O sistema desenvolvido pela equipe do Prof. Dr. Fabricio Almeida atua a partir da vibração da tubulação devido a presença do vazamento. O sinal proveniente dessa vibração é mensurado através de um par de sensores. O resultado é então analisado, tratado e gravado com a ajuda de um sistema auxiliar e um processador. Dessa forma, o sinal obtido pode ser facilmente compartilhado digitalmente, e utilizado em qualquer local para a calibração dos sensores ou do equipamento usado. Basta determinar as características do processo que se deseja analisar, solicitar o serviço e obter o sinal de resposta para a calibração dos equipamentos em campo. Tudo isso de forma simples, rápida e sem a necessidade de grandes investimentos.
"Não há nenhuma solução parecida com o que desenvolvemos em qualquer parte do mundo," diz o Professor, ressaltando o caráter inovador da invenção. O equipamento desenvolvido apresenta não só enorme potencial na luta pela redução de desperdícios de água em território nacional, como também pode revolucionar a forma como os procedimentos de calibração dos sensores, desenvolvimentos de novas técnologias e treinamento de pessoal são conduzidos em todo o mundo.
Formado por engenheiros mecânicos, eletricistas, eletrônicos, de instrumentação e controle e por pesquisadores da área de simulação numérica e processamento de sinais, o Laboratório de Águas Digitais (LAD) é o único do Brasil com abrangência internacional na área de detecção de vazamentos e gestão de perdas (leak detection and non-revenue water managment), além de trabalhar em parceria com equipes de pesquisa de países como China, Itália, Inglaterra e Austrália. O Prof. Dr. Fabrício Almeida é também membro da IWA (International Water Association), uma associação internacionalmente reconhecida pelo seu trabalho na gestão de perdas de água.
O sistema simulado encontra-se hoje com uma patente depositada no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) e com duas patentes internacionais, por meio do PCT (Patent Cooperation Treaty, ou Tratado de Cooperação em matéria de Patentes, em português). O processo de registro da propriedade intelectual foi iniciado pela AUIN, entre os anos de 2016 e 2019. Contudo, quem ficou responsável pela condução e finalização do processo foi a SABESP, financiadora e grande interessada na aplicação prática do projeto. A invenção se encontra em processo de ajustes finais, tendo a previsão de ser liberada em breve para o mercado.
Com o grande sucesso e potencial revolucionário, o Prof. Dr. Fabrício Almeida conta que o grupo de pesquisas não pretende parar nessa invenção. Os pesquisadores já estão trabalhando em outros projetos, que podem ser considerados a continuação do trabalho desenvolvido até então via uma segunda chamada PITE-SABESP/FAPESP. Dentre as pesquisas atuais, a equipe do Professor já estuda a possibilidade de desenvolver sistemas de detecção in-situ, medindo as vibrações provenientes de vazamentos e seus respectivos sinais a partir da superfície do solo, ao invés da parede da tubulação. Caso se concretize, este projeto constituirá outro caso de sucesso para a equipe, reduzindo drasticamente os custos para a instalação de sistemas subterrâneos e riscos de escavações para reparo nos locais errados.